Aos fins de semana esgueirava-me de casa para o meio do mato. Cada sobreiro tinha um nome, imaginava em cada um uma pessoa feliz por me ver. Imaginava a sua tristeza se eu não fosse porque não se podiam deslocar para me ver a mim.
Num velho caminho de gado que contornava já não me lembro o quê, nem sei bem onde ia acabar, existia um especial.
Saía de casa no verão, debaixo de calores infernais com o meu chapéu de palha, os calções e as sandálias de tirinhas. Levava a fisga, o pião, as tiras de papel, eternas companheiras da solidão das horas mortas e sufocantes. Olhava-a de longe e sentia-a sorrir para mim reconhecida. Algumas vezes leveva um regador de plástico para tomarmos chá. Aproximava-me e fazia-lhe uma vénia, era a velha rainha D.Leonor. Depois abraçava-a e ficava ali debaixo da sua sombra contando-lhe os segredos da semana: quantos índios tinha capturado, as caravanas no deserto, os ataques das tropas inimigas, como se tinham portado os meus cavalos em batalhas sangrentas contra os mouros. Corria de uma árvore para outra a cumprimentá-las todas. Todas eram minhas amigas. Pedia desculpas por perder menos tempo com elas e voltava para a realeza onde tinha o "chá" à espera. Com cerimónia, despejava a água à volta do seu tronco e desejava que estivesse perfeito para sua magestade.
Não era assim tão criança, mas as coisas da gente grande pouco me interessavam, já tinha desistido da humanidade. Falar com as pessoas era muito menos interessante do que estar com os pastos, os bichos e as árvores.
Cultivava este amor pela D.Leonor desde a primária. Nunca sonhei com bonecas, serviços de louça ou outras tralhas que as minhas amigas recebiam de presente. Nunca usei tranças (a minha mãe bem queria), mal saía de casa, desmachava o penteado e lá ia eu para o montado. Um dia peguei na tesoura e cortei os cabelos que pesavam nas costas. E durante muitos anos fui um rapaz. Mas a D.Leonor aceitava-me sempre fosse eu como fosse.
Há pouco tempo disseram-me que caiu, ou ardeu, ou simplesmente foi arrancada em nome do progresso. O meu velho coração partiu-se e chorou, só eu sei quanto.
Resta-me a palmeira que eu mesma plantei no meu quintal e fui vendo crescer com o passar do tempo. A Bolinhas. E ainda lhe chamo "minha" e ainda digo "o meu bairro", " a minha rua", "o meu quintal". Morreram as pessoas a quem pregava partidas, morreu o lugar, perdi muitas das memórias e tal como uma estúpida fiz as visitas de quem não conhece nada. Dei as voltas aos bairros "desenvolvidos", fui aos cafés, mas a estes lugares míticos não voltei. Tenho saudades e sonho com eles, mas vê-los mortos, ou desaparecidos não consigo.
Uma vénia hoje e sempre a si, D.Leonor. Obrigada por ter ouvido tanto sem nunca me julgar ou dar sermões. Você foi uma grande amiga.